quarta-feira, 5 de maio de 2010
Mário de Carvalho: "Um escritor é um criador de leitores"
"A arte de morrer longe", o mais recente livro de Mário de Carvalho, é uma sátira conjugal bem humorada,na qual, a pretexto do destino a dar a uma tartaruga, se vão entrelaçando histórias e múltiplas personagens
Em cada livro que Mário de Carvalho publica há sempre uma desconstrução dos paradigmas literários e uma preocupação com o culto estilístico da língua.
E o mesmo acontece com o recém- -editado "A arte de morrer longe", a que o autor voltou a chamar de "cronovelema". Diz Mário de Carvalho que "um escritor deve ser um criador de leitores e, como tal, também neste romance prestou homenagem "a todas as escolas literárias impositivas, proibitivas e injuntivas". Nesta sátira, há um casal jovem desavindo, que caminha para o divórcio sem ter muito bem a certeza de o desejar. Talvez por isso se agarrem ao destino a dar a uma tartaruga que, nas partilhas, nenhum deles quer.
Esta é uma história muito próxima da realidade?
Sim. Tem muito a ver com o nosso tempo. Com estes anos que estamos a atravessar. Tudo isto é retratado através de duas personagens principais - um jovem casal que está desavindo e que considera a hipóese de se divorciar. Mas, no fundo, eles gostam muito um do outro e acabam por protelar sucessivamente essa separação. E um dos pretextos que encontram é a partilha de um certo animal doméstico que têm lá em casa.
Qual a razão que o levou a escolher uma tartaruga?
É algo que tem a ver com o ofício de escritor. Não quis encontrar um animal que fosse uma personagem muito presente, que eu tivesse de construir e fazer interagir com os restantes. Por outro lado, o facto de ser um animal que está enclausurado nas quatro paredes de acrílico remete-nos para certa circunstância da condição humana. Aliás, essa metáfora é lá apontada.
Mas não é a única.
Há duas metáforas que dominam o livro. A primeira é a da ferocidade que acaba por estar debaixo de uma calma aparente. Debaixo dessa pacatez, há seres que se entredevoram. O livro assim começa, o livro assim acaba. Por outro lado, também há nexos de casualidade, o desfechar de consequências que nos escapam completamente.
Como lhe surgiu a ideia para a história?
Este livro aparece nos interstícios de outras coisas. É como aquelas flores que, de repente, brotam onde menos se espera. Eu estava a escrever, talvez umas coisas mais sombrias, e, de repente, foram aparecendo as metáforas e as coisas começaram a tomar forma.
Em que consiste o cronovelema, esse género literário que inventou?
O cronovelema recupera todos esses processos literários que não são novos. Já eram usados por alguma literatura dos séculos XVIII e XIX. Ou seja, não rejeita nenhum dos recursos nem dos mecanismos literários inventados até agora. O que é, de certo modo, a assunção de uma literatura livre, quer de escolas quer de preconceitos quer de imposições quer de proibições.
Há alguma obra sua que seja marcante desse tipo de libertação?
Creio que prestei homenagem a todas essas escolas no meu livro "O grande livro de Tebas navio e Mariana". Depois, a partir daí, senti-me livre para fazer exactamente o que me apetecia, sem me permitir rejeitar nenhum dos mecanismos literários.
No livro, faz muitas referências a Eça de Queirós, um dos seus autores favoritos.
Era bom que os meus leitores fossem no encalce do Eça. Um escritor, em princípio, é um criador de leitores e de leitura. Amplifica a capacidade de leitura. Foi isso que me aconteceu e é isso que espero que aconteça com os meus leitores também.
Percebe-se que tem uma grande preocupação com a língua. Preocupa-o o empobrecimento do Português?
Muitas vezes, quando agarramos alguns dos livros agora editados, temos a sensação de ler coisas já muito requentadas e assentes numa pobreza linguística confrangedora. Nós, que já demos escritores como Eça, Aquilino, Cardoso Pires!....
Faz muita revisão do que escreve?
Sem dúvida. Tenho alguma facilidade de escrever e isso é prejudicial. Compenso esta rapidez, que vem cheia de repetições ou, até, de reincidências, controlando e revendo muitas vezes cada palavra e cada traço. De tal modo que, praticamente, não sou capaz de me ler depois de estar o livro escrito.
ANA VITÓRIA - JN
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